Sobre o álbum

Lançado em abril de 2010,  Batuque de Tudo é CD e DVD de Celso Viáfora – Mauro Dias

celso viafora batuque de tudo

Em palavras simples, o que se aprende com a obra de Celso Viáfora é que o mundo só vale a pena – só se realiza, concretiza-se plenamente, justifica-se e chega ao termo melhor possível – com a participação de todos os que estejam disponíveis, os que sejam suscetíveis à beleza, os que se empenhem na construção da utopia de um tempo harmonioso. E que estejam engajados na causa de tornar o tempo harmonioso. E que se disponham a lutar mais uma vez quando a tentativa falhe e saibam que, sim, é preciso tentar e tentar e tentar. E, ainda, que sejam, como ele, Celso, generosos com a diferença e desejosos de ampliar o círculo, trazendo novos sonhadores para a roda.

É um traço que se torna mais nítido a cada novo trabalho e que, neste Batuque de Tudo, conjunto de CD e DVD gravados em julho de 2009, já se explicita no título. Sem redundância, pois a expressão “batuque de tudo”, ao que tudo indica cunhada pelo compositor, é vaga o bastante para caber em toda situação de confluência (de toques, ritmos, ideias, ideais) e contundente o bastante para servir de carão a quem separa branco de preto, preto de índio, novo de velho e assim por diante (porque uma vez que se começa a separar, tudo é separável. E o mundo acaba).

Batuque de Tudo não é tese, ou hipótese, mas síntese, resultado. Consegue, de uma forma raramente natural, não didática, ser exemplo prático do que faz rezar no discurso poético. A ver: Celso juntou todos os participantes – todos os batuqueiros de todos os batuques – no estúdio SolLua, em Alambari, no interior de São Paulo, estúdio esse de propriedade de um parceiro e participante do disco e do DVD, ainda produtor executivo do trabalho. Estúdio que é mais que estúdio – uma pousada onde todos ficam juntos de manhã à noite, do café da manhã à cerveja da madrugada. Foi para lá gente do Rio, de São Paulo, de Belém, de Teresópolis e de outros cantos, gente do samba e do marabaixo, da canção e do batuque, gente nova começando a pôr o pé na estrada e gente com estrada corrida de não se ver o início – ao mesmo tempo, de uma vez só, para dias de criação e da confraternização.

Disco e DVD foram sendo gravados ao mesmo tempo, não para um banal making of, mas para o registro da atmosfera de cumplicidade, respeito criativo, ousadia respeitosa. O roteiro foi desenhado por Celso ao longo de dois anos. Algumas canções são mais antigas do que isso. Outras foram terminadas em cima da hora do registro. O samba de abertura, letra de Zé Edu Camargo, lembra, e, guardado o espírito da obra, celebra: “Coco não é daqui/ Banana não é daqui/ Manga não é daqui/ Branco e preto aqui não tinha” – e nessa radiografia quase óbvia (como o ovo em pé famoso) estipula quem somos nós, filhos do bom aproveitamento das coisas novas, expressões da mistura, da miscigenação, da aproximação criativa, do contato que vai vencer os preconceitos.

O caráter metafórico da música de abertura abre caminho para explorações mais incisivas – “Favelado não é tudo traficante/ Milionário não é tudo prepotente/ Maltrapilho não é tudo meliante/ Elegante não é, necessariamente, tudo competente” (Que nem a Gente) ou “Não gosto do negro só porque ele é negro/ (….) /Gosto de quem gosta de gostar assim de graça/ (…) /Gosto de quem gostando do outro não se poupa” (A Pessoa), ambas só de Celso, declarações de princípio: esquive-se da visão estereotipada de que o mundo é maior e o tempo nem tão grande.

A instrumentação pode ser pesada, como nessas faixas, em que se casam os tambores amazônicos do Trio Manari, o violão-ícone do samba de Carlinhos Sete Cordas, a guitarra lancinante de Webster Santos, o saxofone urbanamente áspero (delicadamente áspero) de Vinicius Dorin, o contrabaixo afirmativo de Sizão Machado – e assim por diante – ou resumir o mundo da canção na conversa de doze cordas, dois violões, da Conversa ao Pé da Porta, escrita, tocada e cantada por Vicente Barreto e Celso. Naquela fazenda que abriga o estúdio cabe também o encontro mítico das divindades que nos vieram de outros continentes – num momento emocionante, os oriundi Rafael Alterio e Celso Viáfora casam deus e zambi (Dio-Zâmbi) num sincretismo que é também poético e melódico e a todos abriga: “Sono io per te/ E tu per me/ Siamo noi e Dio/ Niente più”).

Celso estréia parceria com o brilhante e novato compositor Caê Rolfsen em No Tambor de Crioula, que prepara terreno para a faixa título, escrita pelo titular do trabalho a quatro mãos com o macapaense Joãosinho Gomes. Aqui, a comunhão de letra e música se dá em molde de pura magia, melodia e poesia em aliterações como poucas vezes se ouviu: “Dança o batuque que entoca o que é triste/ Boto maraca no maracatu/ Batuque que tu em Quito pediste/ A este que te mostrou o lundu”. Também do norte, de Belém, vem o parceiro da canção seguinte, Nilson Chaves (Roda dos Tambores): “Botou congo na canela/ Angola na panturrilha/ Pôs na cintura Benguela/ E o balangar das Antilhas” – e a roda pegou fogo, ou não pegaria, na dança dela?

A visão do mundo que gira harmônico é contagiosa e pega a nova geração pelo cangote, pelo suspiro, pelas cordas sensíveis, e assim é que Rafael Alterio e o filho Pedro Alterio dividem com Celso a parceria de Mãe e Só, caipiras e cosmopolitas contando que a mãe deixou de fazer beiju para levar sinhazinha no candomblé, mãe que foi guerrilheira no Alto Araguaia e faz sinal da cruz no terreiro negro, mãe txucarramãe que também é maia e inca, trapezista checa, tri-atelta, bamba no taekwondo, mameluca e somelier.

Esta mãe multifacetada abre o bloco temático que fala da família, com Quando Vi meu Pai Chorar , Neném (ambas só de Celso), e Tudo Santo (Pedro Viáfora e o pai, Celso). Cada uma delas merece um tratado, mas é fundamental que se examine com mais cuidado a parceria de pai e filho. Aqui, opõem-se e igualam-se os que pretensamente têm o dom do milagre (e tudo podem) e o outro, comum, que se revela tão seu igual: São Carlos Borromeu & Seu Pedro do Toró; São Tertuliano, São Mateus, & Seu Sebastião do Cabrobó – já que tem santo que morreu, ressuscitou, era ateu, se converteu, que se creu a mão de deus e matou.

Outro parceiro novo que Celso nos revela é o argentino Beto Caletti, que fez com ele Desesquecidos; na divertida Cada Um Com seu Cada Qual, participa da execução o Quinteto em Branco e Preto. Volta à cena, não apenas como parceiro na composição mas, também, num dueto vocal de ímpar alegria, um companheiro de longa estrada, Ivan Lins, co-autor da vibrante Boa Nova – aliás, uma das melhores composições novas do grande pianista e compositor carioca. Há um terceiro par de mãos na parceria, Beto Betuk. E o disco se fecha com mais uma trama tecida em dupla com Vicente Barreto, adequadamente chamada Voltar pra Casa.

É a canção que encerra o disco e o DVD, mas este tem alguns números extras, cantados em torno da mesa, a turma toda reunida. Com direção sensível de Gabo Nunes, o registro em imagem consegue trazer para o espectador a atmosfera de vibração emocionada, de expectativa criadora, de ternura no olhar e nos gestos de cada um – dá, sim, vontade de ter estado ali. E entre dezenas de frames emocionantes, dois instantes precisam ser salientados: a graça de caras e bocas de Tatiana Parra contracantando com Celso o gaiato Desesquecidos; e a declaração de Ivan Lins de que, se nascido em momento mais oportuno, Celso Viáfora seria reconhecido em gênio e importância como são Chicos e Caetanos e seus pares. Coisa de que todos sabemos, mas que não custa ser repetida.

BATUQUE DE TUDO
DIREÇÃO GERAL: TULIO FELICIANO
DIREÇÃO DE VÍDEO: GABO NUNES
ÁUDIO: ALBERTO RANELLUCCI
ROTEIRO: CELSO VIÁFORA

ARTISTAS CONVIDADOS: VICENTE BARRETO, RAFAEL ALTERIO, CAÊ ROLFSEN, NILSON CHAVES, PEDRO ALTERIO, TÓ BRANDILEONE, PEDRO VIÁFORA, DANI BLACK, TATI PARRA, QUINTETO EM BRANCO E PRETO E IVAN LINS.

MÚSICOS: WEBSTER SANTOS, SIZÃO MACHADO, TRIO MANARI, VINICIUS DORIN, LÉA FREIRE, CARLINHOS SETE CORDAS, TRIAGO COSTA, THIAGO RABELO (BIG), GABRIEL ALTERIO E THÉO DA CUÍCA.

PRODUÇÃO GERAL: RITA CABRAL.

GRAVADO NO ESTÚDIO SOLLUA (Alambari-SP)

APOIO CULTURAL: ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo)/AMBEV

DISTRIBUIÇÃO: FONOMATIC (TRATORE)

MÚSICAS, LETRAS E CIFRAS