Descrição
PREFÁCIO
O amor como bússola
Diz-se no rico e vasto jargão futebolístico − tão caro a mim e ao autor deste livro que você traz nas mãos − que onde o goleiro pisa não nasce grama. A máxima contém aquela dose saborosa de exagero própria da mitologia do esporte bretão. Aqui, contudo, ela serve como porta de entrada associativa para a analogia que realmente me interessa: onde a palavra do Celso chega, a vida brota.
A primeira vez que as palavras cantadas do Celso me atingiram foi ali em meados dos anos 1990. A palavra “atingiram” não é uma escolha vocabular fortuita: aqueles versos me moveram, me despertaram em meio ao ramerrame anódino das canções passageiras.
Já ouvi relatos de Chico, Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Edu Lobo e outros tantos sobre o choque de ouvir João Gilberto cantando pela primeira vez “Chega de saudade”, e a profusão dos relatos revela a dimensão íntima do que representou no imaginário de cada um o primeiro contato com aquele fonograma divisor de águas. Pois bem, eu me lembro onde estava quando ouvi “Luz do meu samba”, música de encerramento do álbum Paixão candeeira (1996): no banco de trás do Logus verde da minha mãe, voltando da escola, ouvindo a finada (e saudosa) Rádio Musical FM 105,7. Celso, que até então era só uma voz, tão anônima quanto luminosa, cantava: “É/ tem que haver uma razão/ pra ser feliz/ pois quase sempre é verão neste país/ quase sempre existe um sol no céu/ que nem cobra aluguel/ um verso no papel/ um Chico, um Ismael/ pra iluminar feito santo padroeiro/ pra iluminar mais um samba brasileiro”.
Desde aquele preciso instante, sempre houve, na minha vida, uma razão pra ser feliz: ouvir o que o Celso tinha a dizer em forma de canção. Disco a disco, faixa a faixa, cada verso que escrevia parecia ser sempre a versão mais bem-acabada, a expressão mais exata e surpreendente, de uma determinada ideia. Isso sem falar no melodista magnífico que ele é: a coesão de seu discurso lírico-melódico é de causar espanto.
Defina sorte? Tornar-se amigo de um ídolo. Presentes da trama tecida pelo tear dos dias, primeiro me aproximei do Pedro, filho do Celso, que se tornou meu grande amigo e parceiro, e comparsa em nosso grupo, o 5 a Seco, e com isso − glória − conheci o Celso em pessoa. Vivi e vivo aquela felicidade rara e indizível de estar próximo de uma figura referencial e, embora eu finja costume, sempre sei e nunca me esqueço de que estou ombro a ombro com um gigante.
Como alguém sempre ávido por me nutrir e inspirar com as palavras de Celso, celebrei, agora de mais perto, quando começaram a se tornar frequentes suas incursões literárias: seus romances anteriores (Amores absurdos e A névoa dos olhos) confirmavam, com lirismo, delicadeza e contundência, o que as canções já havia tanto tempo escancaravam: olha lá a prosa do Celso abrindo fendas de vida na vida, clareiras na névoa da mesmice. Quem sabe extrair poesia da vida, encharca a vida de poesia.
Este longo preâmbulo com tintas confessionais pareceu-me incontornável: a sensação de escrever estas palavras sobre o terceiro romance do Celso me deixou tão feliz quanto trêmulo. Sinto-me um discípulo convidado a falar sobre o mestre. Foi daqui, deste ponto de partida afetivo e existencial, que li esta Balada do tempo inacabado. É um olhar enviesado? Talvez. Culpa do Celso: foi ele que me acostumou mal, de tanto que me fez bem.
O protagonista do romance é Cláudio. Digo, Vinicius. Ou melhor, o tempo. Reformulando: é sobre o tempo em que Cláudio foi Vinicius e o tempo em que Vinicius deixou de ser Cláudio. É sobre o que o tempo fez a Cláudio e o que o tempo fez a Vinicius. É sobre, como na melhor literatura, o tempo atravessando a gente e a gente atravessando o tempo.
Porque, em Balada do tempo inacabado, há essa rara capacidade de articular a vivência pessoal e a História com H maiúsculo, o íntimo com o monumental, o particular e o público. Os personagens vivem suas emoções intensamente, mas o rumo de suas vidas está intrinsecamente atravessado pelas circunstâncias históricas que os cercam: num passado remoto, a ditadura chilena e um desastre natural; num presente perturbador, a pandemia de coronavírus.
Nada disso se faz com as tintas carregadas de um romance tese: vamos soltos, navegando na prosa de Cláudio, aliás Vinicius, naquela onipotência tão característica e indestrutível dos vinte e poucos, e de repente estamos alojados em Viña del Mar, naquele festival, naquela paixão maior que a vida do encontro com Ohana. Encharcados daquela emoção, somos nós um pouco ali dentro do protagonista, vivendo suas desventuras, os desencontros de amor em meio à busca da glória (talvez fugaz) da consagração musical.
A prosa de Celso tem sempre a chave da porta da emoção mais genuína, e sabe escancará-la sem alarde, de modo a nem percebermos como entramos nessa montanha-russa de emoções, de dias tão grandes quanto diamantes, lendo/vivendo todos os sonhos do protagonista, que nos lembram dos nossos próprios.
Sinto que este romance, em sua habilidosa articulação de camadas temporais, fotografa com exatidão aqueles raros momentos em que o extraordinário suplanta o ordinário. Momentos de suspensão, em que o encantamento e a novidade rasgam qualquer ranço de monotonia: instantes de quase suspensão − tempo a favor − em contraposição à vida cotidiana do trabalho que nos arrasta, mói a carne e achata os sonhos − tempo inclemente.
Mas dizer tudo isso ainda é dizer pouco: como toda obra que nos encanta e move, toda vez que nos sentimos capazes de enquadrar Balada do tempo inacabado num determinado molde, logo vem uma puxada de tapete e uma nova camada se descortina. A bem da verdade, são muitos livros em um: relato de viagem vertiginoso, romance de formação, história de amor arrebatadora, crônica política de uma certa América Latina do tempo das ditaduras, crônica sanitária de uma outra América Latina em meio a uma pandemia devastadora e a um levante popular, canto de amor à arte como traço de união dos povos. É tudo isso e é mais que isso e tudo emerge numa leitura sem esforço, onde a estrutura engenhosa nunca se põe acima da prosa tão caudalosa e saborosa quanto fluida.
Todos temos, em nós, Cláudio e Vinicius: a resignação e o ímpeto; o servidor público concursado e o encantador de multidões. Balada do tempo inacabado é um chamado ao despertar da letargia, uma convocação a reencontrar a avidez do propósito: qual é o verdadeiro motor de nossas vidas? Estamos nos movendo em direção a um ideal ou simplesmente sendo arrastados pela indiferença do tempo? Estamos em sintonia com nossas verdadeiras paixões? O amor está na ordem do dia?
Às vezes é preciso remover o amor debaixo dos escombros. Varrer com delicadeza a camada de poeira que sobre ele se deposita. Balada do tempo inacabado, com ecos de García Márquez (Amor nos tempos do Covid?) e a magistral simplicidade que só os grandes mestres ostentam, nos acorda para algo que, de tão elementar, muito facilmente nos escapa: é preciso fazer do amor a própria bússola.
Porque, no fim das contas, Balada do tempo inacabado faz jus ao nome que tem: vencida a última página, atravessado o último parágrafo, fecha-se o objeto. A leitura termina, mas o livro continua − como a vida.
Vinicius Calderoni